domingo, 1 de abril de 2012

Atuação política: o querer, o poder e o fazer

Márcia Ângela Aguiar
Presidente da Anped

Qualquer análise que hoje se faça de algum aspecto particular da política educacional não pode prescindir de situá-la no contexto das relações globalizadas, considerando a forma como o Estado brasileiro formula e implementa as políticas públicas. Importa, também, entender que as políticas públicas resultam de lutas entre grupos sociais e, de acordo com os resultados dos embates, há aqueles que conseguem inscrever suas demandas na agenda de governo.
Desde a década de 1980, nas lutas em prol da Constituinte e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), um segmento dos educadores tem sido presença importante no cenário nacional, apesar de não ter, ainda, força suficiente para que as bandeiras históricas que assumem se concretizem como políticas públicas efetivas. Contudo, no momento em que se define, na esfera governamental, um plano de desenvolvimento da educação, é necessário atentar para a relevância deste fato, tendo em vista que quanto mais obstáculos se apresentem ao cumprimento do direito efetivo à educação de qualidade, mais necessário se faz a vigência de um plano educacional. Todavia, é importante lembrar que um plano educacional reflete determinadas possibilidades que emergiram no contexto de disputas sociais e de disputa de projeto de educação. No Brasil, há lutas em função de uma visão de realidade, de um projeto de sociedade e de projeto educacional.
Essas lutas foram se delineando ao longo do tempo e mesmo que tenhamos alcançado, de certa perspectiva, a possibilidade de ter representantes das forças que consideramos progressistas, em instâncias decisórias, ainda nos deparamos com sérios problemas para a efetivação do direito à educação. Não podemos esquecer que este país se insere na lógica do capitalismo , o que impede, em última análise, que se concretizem direitos sociais efetivos da população. Os direitos sociais, neste contexto, não são atendidos plenamente. O caso da educação é revelador dessa situação tendo em vista as lutas históricas dos educadores para conseguirem um padrão adequado em termos da formação, das condições de trabalho e de condições salariais. Não obstante os avanços conseguidos em decorrência das lutas empreendidas, os educadores, historicamente, não têm conseguido alcançar todos os objetivos inscritos em suas pautas de reivindicações há mais de duas décadas. E dificilmente essas reivindicações serão atendidas plenamente. Isto significa, numa determinada perspectiva, que precisamos estar permanentemente engajados nas lutas, nos espaços que sejam atinentes à nossa própria atuação como profissionais e como cidadãos.
Nesse sentido é importante acentuar que o processo de definição das políticas públicas encerra lutas de segmentos em função de determinados objetivos. E que somente questões que são socialmente problematizadas têm a possibilidade de serem traduzidas em termos de políticas efetivas. Daí que, por mais relevante que seja determinada questão atinente a qualquer um dos setores da sociedade, só haverá possibilidade de ser transformada em uma política pública se for assumida por segmentos que lutam e que em determinadas conjunturas tenham a hegemonia desse processo. Do mesmo modo, este movimento que se verifica na etapa da formulação das políticas também se observa no momento das decisões de implementação, quando as decisões no próprio interior do aparelho do Estado, são objetos de intensas disputas.
Muito do que estamos vivendo ou vendo hoje, no Brasil, em relação ao modo como as políticas são definidas em nível dos ministérios e, particularmente, do Ministério da Educação, é revelador das tensões e das disputas que se dão no momento da decisão. A operacionalização das políticas está diretamente ligada à capacidade que as forças sociais e políticas que as demandaram detiverem para que sejam implementadas. Admitindo-se, também, que nenhuma política, em qualquer que seja a situação, jamais vai se concretizar nos mesmos termos em que foi concebida. O seu raio de ação é diretamente proporcional à força política e capacidade de organização que tenham os segmentos que a demandaram. Ou seja, no caso da educação, os avanços que os profissionais da educação querem ver consolidados no tocante à formação e às condições de trabalho, dependerão, sobretudo, da própria luta dos trabalhadores em educação. Com efeito, por mais que as políticas apontem no sentido do alcance desses objetivos, a sua efetividade estará estritamente ligada à capacidade de luta que os segmentos organizados detenham. Não podemos deixar de considerar, por outro lado, que no interior dos movimentos dos educadores, diversos tipos de lutas e de disputas também ocorrem. Além do que, outras disputas se dão em termos da sociedade civil influenciando o processo de definição das políticas educacionais.
É necessário considerar o fato de que estamos ingressando em um patamar de definição de políticas em que novos atores também estão presentes. Quando nos referíamos, em outros momentos, por exemplo, à sociedade civil, aos setores organizados, sempre vinha a idéia de que setores organizados e sociedade civil seriam forças sociais progressistas, preferencialmente, “ de esquerda”. No entanto, uma análise mais acurada do que ocorre no País mostra um cenário de grande complexidade, quando vários grupos estão organizados buscando influenciar os rumos da política nacional em todos os âmbitos. No campo educacional, esse movimento é visível, como pode ser observado na instituição do movimento Compromisso“Todospela Educação” que busca intervir no contexto da definição das políticas nacionais de educação. Trata-se de um movimento capitaneado por empresários que emergiu recentemente na sociedade, e que certamente dispõe de recursos de poder para influenciar o campo da política de educação básica. É um novo ator que aparece e oriundo da sociedade civil.
Tudo indica que um novo patamar está se delineando no plano da disputa em relação à política educacional. O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), recém-lançado pelo governo federal, está nesse contexto. No processo de formulação deste Plano, as entidades nacionais - Anped, Anfope, Anpae, Forumdir, Cedes - não foram interlocutores do Ministério da Educação, como ocorrera em outros momentos. A análise comparativa das diretrizes do PDE com as metas do Compromisso “Todos pela Educação”mostra grande similitude, o que nos permite afirmar que o setor empresarial pode ser considerado um novo ator influente na definição dessas políticas. Diante deste quadro, urge reafirmar a centralidade da escola pública de qualidade social, bandeira que une grande parte das entidades do campo educacional. Novas formas de enfrentar as disputas em torno de projetos educacionais são necessárias. A própria expressão “qualidade”, como todos sabemos, é um termo polissêmico e que, dependendo dos grupos que assumem o poder de decidir, tem uma conotação A, B ou C.
Mesmo a qualidade social, considerada bandeira histórica dos setores progressistas, tem novo significado. Neste sentido, é interessante analisar também o que se passa com o PDE. Ao ser anunciado, o Plano aparece como se fosse algo muito novo no cenário educacional, como se não tivesse havido todo um caminho percorrido pelo movimento dos educadores pressionando o governo para operacionalizar, de forma orgânica, o Plano Nacional de Educação.
Desse modo, é possível afirmar que o Plano de Desenvolvimento da Educação surge com uma fragilidade muito grande: a falta de um diálogo com boa parte das entidades do campo educacional.
Todavia, de outra perspectiva, pode-se considerar que não há um espaço vazio de influência no campo da política. Quem são os interlocutores efetivos do Ministro da Educação e que participaram da formulação do Plano de Desenvolvimento da Educação nos termos em que foi anunciado? Verifica-se que o PDE contempla aspectos que coincidem com aqueles que estão nas pautas de reivindicações das entidades anteriormente mencionadas, contudo, estes aparecem apenas como estratégias ou conjunto de metas, sem que se perceba uma articulação orgânica. Quando se parte para analisar o PDE considerando as três bandeiras históricas dos movimentos - a universalização da educação básica, a valorização dos trabalhadores em educação e a gestão democrática - percebe-se claramente que se está diante de um conjunto de metas que, dependendo da forma como serão operacionalizadas, poderão concorrer para agravar a fragmentação do campo educacional.
Do ponto de vista da formação dos professores, essa talvez seja a questão que mais preocupa. Isso porque, durante 20 anos de lutas, os setores organizados não viram ser instituída uma política articulada direcionada à formação. Não foi instaurado um sistema nacional de formação de professores que articulasse simultaneamente a formação inicial à formação continuada e condições de trabalho dos docentes e dos profissionais da educação. As políticas anunciadas insistentemente nos últimos tempos referem-se à educação a distância e ao sistema da universidade aberta (UAB), como também a transferência do campo de definição da política de formação, tradicionalmente vinculada à Sesu e à SEB para a Capes. Esta decisão exige a redefinição da Capes, que tem importante tradição na pós-graduação e um sistema de avaliação reconhecido internacionalmente. Entretanto, muito embora desfrute de reconhecido prestígio na qualificação de quadros docentes de alto nível, a CAPES nunca se aproximou de forma sistemática do debate sobre a educação básica.
Essa provável mudança do locus de formação que indica o esvaziamento dos setores do MEC que tradicionalmente têm lidado com a formação para a educação básica, rompe uma cultura que está instalada, a despeito das limitações existentes, e não parece configurar-se como uma boa perspectiva para a área. Entende-se que poderia ser formulada uma política de valorização dos docentes mediante a instituição de um sistema parecido com o da pós-graduação, mas sem retirar a responsabilidade desta definição da Sesu e da SEB, juntamente com o Conselho Nacional de Educação. Esta é uma questão delicada que deverá ser debatida amplamente. Ainda no quadro até aqui descrito, não se pode deixar de sublinhar as decisões concernentes a educação a distância, tendo em vista que modificará o cenário da formação dos professores no Brasil.
A educação a distância poderá ser um meio poderoso, ao lado de outros mecanismos, para ajudar a minimizar a precariedade do atendimento educacional no País. Contudo, é necessário alertar que se a instauração da universidade aberta e a educação a distância seguirem modelos que não respondem às necessidades efetivas, poderá se caminhar na contramão das lutas que visam garantir a formação qualificada de professores. Trata-se, portanto, de uma questão em aberto com possibilidades de intervenção dos setores organizados. É preciso que todos aqueles que têm a responsabilidade e a possibilidade de intervirem nesse campo, bus-quem ampliar o debate para se ter mais clareza sobre os rumos efetivos da educação brasileira, nos próximos anos.

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